Bruno Gawryszewski[1]
Gabriel Marques[2]
O futebol é o esporte que desperta
maior entusiasmo no mundo. O dinamismo das partidas, a facilidade em praticá-lo
– pode-se jogar “bola” com qualquer objeto que deslize no chão –, e a relativa
imprevisibilidade dos resultados são alguns dos elementos que contribuíram para
sua grande popularidade. Contudo, assim como qualquer atividade, também o
futebol foi apropriado e adequado ao modo de produção capitalista, objetivado
em características como a reprodução da lógica do trabalho alienado, a mercantilização
e a elitização da prática esportiva e o embrutecimento dos sentidos e valores,
na medida em que o valor estético é posto em eclipse pelo valor de troca da
mercadoria futebol.
O homem se faz homem na sua troca
material com a natureza e assim possui a capacidade de processar a objetivação
de sua subjetividade nos objetos que cria, conferindo-lhes uma forma útil à
vida humana, portanto, humanizando-os. Esse processo de objetivação integra a
construção da relação homem-mundo e, por isso, não ocorre como individualidades
isoladas, mas como prática social / coletiva. Por isso, afirmamos que o
indivíduo é um ser social, bem como os sentidos se fazem humanos no processo de
socialização do homem.
Nesse sentido, compreendemos que o futebol é uma prática social que se
transformou num patrimônio cultural da humanidade, fruto do conhecimento e
experiência das gerações anteriores. Portanto, ela é dotada de sentidos que
foram ao longo da história construídos e formaram uma materialidade corpórea
própria, ou ainda, ensejaram uma cultura corporal que possibilita momentos de
catarse coletiva, fazendo com que os indivíduos não vivenciem o mundo de maneira
sempre atrelada ao pragmatismo e imediatismo da vida cotidiana. E justamente em
oposição aos valores e concepção de mundo difundida pelo capital, é que foi
organizada a I Copa América Alternativa (CAA).
A ideia de realizar a CAA surgiu de experiências difundidas na Europa, onde
são realizados eventos que reúnem equipes de futebol que discordam dos ditames
do futebol-mercadoria, que vão de encontro às práticas fascistas, racistas,
machistas e/ou homofóbicas e que decidiram reagir a essa expropriação comercial
das práticas culturais. Esses torneios de futebol, inclusive a organização a
cada dois anos da Copa do Mundo Alternativa, promovem, ao menos, outro ponto de
vista para se vivenciar o esporte, organizado a partir das iniciativas
individuais e coletivas dos próprios jogadores, sem que haja preocupações com
ações de marketing e propaganda, vendas e lucros muito menos um monopólio de
grandes marcas que se revezam como patrocinadores dos megaeventos esportivos. E
foi a partir da experiência de jogar a Copa do Mundo em 2010, na cidade de
Yorkshire, Inglaterra, que a equipe paulista do Autônomos & Autônomas F.C.,
em associação com o CSAD Che Guevara – time argentino da cidade de Jesus Maria
– se juntaram para organizar a I Copa América Alternativa em janeiro de 2012[3].
Ao tomarmos conhecimento da convocatória do evento, ainda em meados do ano de
2011, decidimos participar dessa empreitada.
A confiança que nos fez resolutos em montar um time para jogar futebol
num outro país se originou ainda em meados da década de 2000, quando alguns
amigos entenderam que seria importante a realização de um evento que reunisse
os antigos e atuais companheiros de vida, a maioria professores e estudantes de
Educação Física, militantes do movimento estudantil na Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Quase que espontaneamente, o evento, realizado em freqüência
semestral, ganhou um nome: “Pelada da Esquerda”. Com a divulgação da convocação
da I Copa América Alternativa, o grupo de amigos se expandiu, ao juntar forças
com companheiros do Arquivo Nacional, fruto da
articulação da luta dos servidores públicos federais no Rio de Janeiro,
principalmente nas greves do Ministério da Cultura e do próprio Arquivo
Nacional[4]. Assim, esse
grupo decidiu transformar a reunião semestral numa equipe de futebol para se
fazer presente na Argentina.
Os integrantes do “Pelada da Esquerda” compartilham a compreensão de que
é preciso desenvolver uma prática esportiva distinta do modelo hegemônico,
difundido para a maioria da sociedade, marcado por um espírito competitivo e
destrutivo das relações humanas, em que o prazer e a livre fruição do esporte são
minimizados em nome de valores egoístas; também criticam o caráter mercadológico
e reificado, que tem no consumo de produtos esportivos, baseado em valores de
troca e fetiches de modas fugazes, o seu objetivo final, fator que não atende a
contento os seus praticantes, que muitas vezes nem consomem os nutrientes
necessários para uma prática esportiva saudável; e reivindicam que o esporte e
o lazer sejam fomentados como política de Estado em caráter público, gratuito,
universal, compreendidos como componentes para a formação integral do ser
humano.
Nossa expectativa era em encontrar um ambiente de fraternidade,
companheirismo e coletividade, em que os ideais defendidos pelo patrono da
equipe anfitriã, Che Guevara, se materializassem em práticas diferenciadas no
evento. Foi consenso entre os integrantes da equipe de que o evento foi marcado
por uma disposição dos participantes em promover relações humanas mais
harmônicas e solidárias, fato que se confirmou durante as partidas. Além disso,
foram louváveis: a tentativa de que todas as equipes jogassem uma quantidade
semelhante de partidas; a possibilidade de realizar substituições a qualquer
momento, permitindo que todos os jogadores da equipe participassem durante
tempo semelhante; e a realização de alguns jogos que contaram com a presença simultânea
de homens e mulheres.
Contudo, a construção de uma experiência que se pretenda pioneira não
está livre de imprevistos, nem sempre
sendo possível de serem
sanados de modo imediato. De modo a avançar na realização de um evento
ainda mais rico e próximo de seus objetivos, ponderamos que os espaços de
discussão política não conseguiram acontecer de modo a envolver os participantes,
tendo em vista que não foi divulgada previamente nenhuma programação nem houve
uma convocação para essas discussões. É imprescindível que haja uma melhor
disseminação de informação, antes e durante o evento. Também registramos que,
em determinados momentos, ocorreu pouca participação coletiva das equipes na
organização do evento, o que também inclui o nosso time. Uma sugestão seria
que, conforme as equipes se inscrevessem para participar, elas tivessem de se
responsabilizar por alguma tarefa durante o torneio, de modo que o evento se
consolide cada vez mais como uma produção coletiva, resultado de um esforço
pela construção de um homem novo. No entanto,
salientamos que tais ponderações servem tão-somente para acumularmos substratos
que nos auxiliem na construção/organização das próximas edições da Copa América
Alternativa.
Realizamos um balanço muito positivo – não tanto pelos nossos resultados
dos jogos – de nossa participação na I CAA. Certamente vivenciamos uma
experiência a ser relatada, compartilhada e difundida entre nossos alunos nas
escolas onde trabalhamos e entre nossos amigos nas “Peladas” aqui no Brasil. Enfrentamos
adversários da Argentina, Chile, Lituânia e Inglaterra, conseguimos uma vitória
nos pênaltis contra os camaradas do Easton Cowboys e pretendemos organizar um
confronto com o Autônomos & Autônomas FC, equipe vencedora da Copa América,
denominado Recopa Alternativa. Além disso, é nossa intenção participar da
próxima edição da Copa América, nos encontrando novamente com praticantes do
futebol, que estejam presentes nas lutas contra quaisquer injustiças cometidas
contra quaisquer pessoas em qualquer parte do mundo, vislumbrando e acumulando
forças para a construção de um novo modelo de sociedade, para além do capital!
[1]
Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e torcedor
do Clube de Regatas Flamengo.
[2] Mestre
em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e torcedor do Botafogo
de Futebol e Regatas.
[3] Está em
fase de pós-produção um documentário sobre a Copa América Alternativa. http://www.youtube.com/watch?v=JKCwB76_8I0
– legendas em inglês. http://www.youtube.com/watch?v=FaXhuQyh4ec&feature=youtu.be
– legendas em português.
[4] O time
também contou com dois valorosos companheiros da cidade de Juiz de Fora (MG),
um gaúcho, um colombiano e um cordobês.